Uso racional de medicamentos durante a pandemia de Covid-19. Artigo

Hoje, 05 de maio, é o Dia Nacional do Uso Racional de Medicamentos.

Crédito: Edição Krystian Comberlang

Em 31 de dezembro de 2019, a Organização Mundial de Saúde (OMS) foi alertada pela China sobre os primeiros casos de uma pneumonia de etiologia desconhecida em Wuhan, província de Hubei (1), onde pacientes apresentavam sintomas clínicos como tosse seca, dispneia, febre e infiltrados pulmonares bilaterais nas imagens (2). No dia 7 de janeiro o Centro Chinês para Controle e Prevenção de Doenças (CCDC) identificou o agente etiológico a partir de amostras de esfregaço da garganta sendo nomeado pelo Comitê Internacional de Taxonomia de Vírus  de Síndrome Respiratória Aguda Grave Coronavírus 2 (SARS-CoV-2), e a doença posteriormente denominada de Covid-19 pela OMS (2). Em 30 de janeiro a OMS declarou a epidemia de Covid-19 como uma Emergência de Saúde Pública de Preocupação Internacional e em 11 de março de 2020 a OMS caracterizou a doença causada pelo coronavírus como uma pandemia (1).

A transmissão da Covid-19 se dá através de uma pessoa doente para outra ou por contato próximo por meio de toque do aperto de mãos contaminadas, gotículas de saliva, espirro, tosse, catarro, objetos ou superfícies contaminadas (3).

A infecção pelo SARS-CoV-2 pode variar de casos assintomáticos e manifestações clínicas leves, até quadros moderados, graves e críticos, sendo necessária atenção especial aos sinais e sintomas que indicam piora do quadro clínico que exijam hospitalização do paciente. Casos leves caracterizam-se pela presença de sintomas não específicos, como tosse, dor de garganta ou coriza, seguido ou não de anosmia, ageusia, diarreia, dor abdominal, febre, calafrios, mialgia, fadiga e/ou cefaleia (3). Sintomas de transtorno de estresse pós-traumático, ansiedade e depressão também foram evidenciados em pacientes infectados com SARS-CoV-2 (4).

O diagnóstico clínico pode ser feito através da investigação clínico-epidemiológica, anamnese e exame físico adequado do paciente, caso este apresente sinais e sintomas característicos da covid-19. O diagnóstico laboratorial pode ser realizado tanto por testes de biologia molecular (Ex.: RT-PCR), que permite identificar a presença do material genético (RNA) do vírus, quanto por sorologia (Ex.: Ensaio Imunoenzimático (ELISA), Imunoensaio por Quimioluminescência) que detecta anticorpos IgM, IgA e/ou IgG produzidos pela resposta imunológica do indivíduo em relação ao vírus SARS-CoV-2, ou por testes rápidos que utilizam a metodologia de Imunocromatografia e podem detectar antígeno (proteína do vírus) em amostras da naso/orofaringe, durante a fase aguda da doença, ou o anticorpo em amostras de sangue. O diagnóstico de imagem é realizado através de tomografia computadorizada de alta resolução – TCAR, onde pode-se detectar alterações tomográficas compatíveis com caso de Covid-19 (3).

Evidências sugerem que pacientes com Covid-19 grave podem ter uma hiperinflamação desencadeada por uma “tempestade de citocinas” (5), sendo considerado como um mecanismo-chave na fisiopatologia da SARS-CoV-2 e relacionada ao dano pulmonar e letalidade observada em pacientes portadores de COVID-19 ( 4). Níveis aumentados de citocinas pró-inflamatórias são uma assinatura imune compartilhada com vários transtornos psiquiátricos, pressupondo que a relação entre SARS-CoV-2 / hospedeiro pode possivelmente prejudicar as interações entre o sistema imunológico, nervoso e sistemas endócrinos, levando a sintomas psiquiátricos. Vários outros fatores também podem estar envolvidos na associação entre COVID-19 e desfechos psiquiátricos, como medo inerente à pandemia, efeitos adversos de tratamentos, bem como estresse financeiro e isolamento social (4). Portanto, os impactos da doença podem ir além do sistema respiratório, afetando também a saúde mental, e tudo isso pode levar a um uso não racional de medicamentos, tanto para tentar tratar os efeitos diretos da Covid-19 como para tratar os distúrbios psiquiátricos e outros efeitos indiretos consequentes da pandemia.

De acordo com a OMS, o uso racional de medicamentos consiste na administração de fármacos adequados aos pacientes conforme suas necessidades clínicas, em doses que atendam às suas necessidades individuais, por um período adequado e com o menor custo para eles e para a sua comunidade. O uso não racional de medicamentos pode levar a um tratamento ineficaz, aumento das reações adversas e o surgimento de consequências negativas para o paciente, consistindo em um dos maiores problemas em nível mundial. A automedicação inapropriada, o uso inadequado de antimicrobiano e a “polifarmácia” (uso de vários medicamentos por paciente) consistem em alguns exemplos de uso irracional de medicamentos (6).

Cada medicamento registrado no Brasil recebe aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) para uma ou mais indicações, as quais passam a constar na sua bula, e que são as respaldadas pela Agência. O uso “off label” de um medicamento ocorre quando este é empregado para uma indicação ainda não aprovada pela ANVISA, que não consta na bula deste fármaco. O uso é feito por conta e risco do médico que o prescreve, e pode eventualmente vir a caracterizar um erro médico, mas em grande parte das vezes trata-se de uso essencialmente correto, apenas ainda não aprovado. O que é uso off label hoje pode vir a ser uso aprovado amanhã, mas nem sempre isso ocorrerá. O que é off label hoje, no Brasil, pode já ser uso aprovado em outro país. Não necessariamente o medicamento virá a ser aprovado aqui, embora freqüentemente isso vá ocorrer, já que os critérios de aprovação estão cada vez mais harmonizados internacionalmente (7). No início da pandemia, diante da falta de terapia farmacológica comprovadamente eficaz contra o Sars-Cov-2, viu-se o uso “off label” – quando não existe o uso aprovado para essa indicação e não consta na bula – de vários medicamentos, entre os quais pode-se citar a cloroquina, hidroxicloroquina, nitazoxanida e a ivermectina, que tinham outras indicações que não o tratamento da Covid-19.

Ao longo de 2020, a ANVISA publicou RDCs (Resolução da Diretoria Colegiada), entre as quais a RDC 405/2020, que estabeleciam regras de controle para a prescrição, dispensação e escrituração, objetivando coibir a compra indiscriminada de medicamentos que tinham sido amplamente divulgados como potencialmente benéficos no combate à infecção humana pelo novo coronavírus (Sars-CoV-2), embora ainda não existissem estudos conclusivos sobre o uso desses fármacos para o tratamento da Covid-19 (9).

Em janeiro de 2021 (19/01), o Conselho Nacional de Saúde (CNS) encaminhou o ofício nº 17/2021/SECNS/MS ao Ministério da Saúde pedindo a revogação de qualquer instrumento (nota técnica, nota informativa, orientações, protocolos ou ofícios) que incentive o uso de medicamentos para Covid-19, sem eficácia e seguranças comprovadas e aprovadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), levando em consideração a nota informativa nº 17/2020- SE/GAB/SE/MS com orientações do Ministério da Saúde (MS) para manuseio medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da Covid-19, incluindo a indicação de dosagem de medicamentos como Difosfato de Cloroquina, Azitromicina e Sulfato de Hidroxicloroquina (8).

Estudos realizados em pacientes necessitando hospitalização, observou-se que o uso de Cloroquina ou hidroxicloroquina e ivermectina não evidenciaram nenhum benefício do uso, como redução da necessidade de oxigênio suplementar, admissão em UTI, ventilação invasiva ou óbito. Entretanto, o uso de Cloroquina ou hidroxicloroquina, com ou sem um macrolídeo, foi associado a um aumento do risco de arritmias ventriculares e maior risco de morte intra-hospitalar com Covid-19 (17, 19). O uso abusivo e indiscriminado de antibióbicos, como a azitromicina, expõe os microrganismos aumentando a pressão seletiva sobre estes, criando essa oportunidade que facilita a aquisição de mecanismos de resistência e, portanto, o uso irracional de antimicrobianos leva ao aumento da resistência bacteriana (18). Estudos in vitro demonstraram que a ivermectina impede a replicação viral do Sars-Cov-2, todavia a dose necessária para alcançar a concentração plasmática necessária à atividade antiviral em humanos é mais de 100 vezes a dose usualmente utilizada como antiparasitário, ou seja, para que ocorra essa atividade antiviral a ivermectina tem que ser usada numa dose muito superior às aprovadas para uso comprovadamente seguro em humanos (20). A FDA (U. S. FOOD AND DRUG ADMINISTRATION) não aprovou a ivermectina para uso em tratamento ou prevenção da COVID-19 em humanos nos EUA, ratificando que a ivermectina não é um antiviral e que os comprimidos são aprovados em doses específicas para alguns vermes e parasitas, e que o uso irracional desse medicamento é perigoso e pode causar sérios danos e até morte (21).

Dados do Ministério da Saúde mostram que até 30/04/2021 tivemos 14.659.011 casos, com 403.781 óbitos acumulados (15). Informações atualizados do Ministério da Saúde em 01/05/2021 mostram que o número de doses de vacinas distribuídas foi de 64.384.978 e 41.656.118 doses aplicadas (16).

Muitos medicamentos e vacinas contra Covid-19 estão em estágios avançados de pesquisa e alguns já têm seu uso aprovado pelas agências reguladoras. Fármacos como proxalutamida (antiandrogênico) (12), Casirivimabe e imdevimabe (anticorpos monoclonais)(10) , Eculizumabe (antinflamatório)(11), AMY-101 (antinflamatório) (11), soro anti covid do Instituto Butantan (produzido a partir da inoculação em cavalos)(13), Rendesivir (antiviral)(14), entre outros, mostram-se promissores para serem utilizados – em monoterapia ou associado a outros fármacos – num futuro próximo, como medicamentos efetivos contra Covid-19. Portanto, temos esperança de que, em breve, alguns fármacos estarão disponíveis no sistema de saúde para um tratamento comprovadamente eficaz.

Não há dúvidas de que os medicamentos são necessários e importantes nos tratamentos de doenças, interferindo na qualidade de vida da população, devendo ser utilizados e/ou aplicados de maneira correta, caracterizando uso racional de medicamentos. Eventos adversos a medicamentos podem causar danos aos pacientes, incluindo mortes, bem como levar à internação ou prolongar hospitalização, aumentando a demanda por assistência hospitalar e, dessa forma, agravar ainda mais a situação atual do sistema de saúde. Portanto, medicamentos só devem ser utilizados mediante avaliação e prescrição médica.

Contudo, enquanto ainda não temos vacinas suficientes para imunizar toda população e tratamentos eficazes disponíveis para uso em massa, nossa melhor opção é se proteger para evitar o contágio com a Covid-19. O Ministério da Saúde orienta que devemos fazer uso de medidas não farmacológicas como distanciamento social, etiqueta respiratória e de higienização das mãos, uso de máscaras, limpeza e desinfeção de ambientes, isolamento de casos suspeitos e confirmados e quarentena dos contatos dos casos de covid-19, conforme orientações médicas (3).

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

1     ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE – OPAS/OMS. Histórico da pandemia de COVID-19. Brasília, DF. Disponível em: <https://www.paho.org/pt/covid19/historico-da-pandemia-covid-19>. Acesso em: 18 abril 2021.

2     SOHRABI, C. et al. World Health Organization declares global emergency: A review of the 2019 novel coronavirus (COVID-19). International Journal of Surgery, v. 76, p. 71–76, 2020.

3     BRASIL. MINISTÉRIO DA SAUDE – MS. Sobre a doença. Brasilia, DF. Disponível em: <https://coronavirus.saude.gov.br/sobre-a-doenca>. Acesso em: 26 abril 2021.

4     RAONY, I. et al. Psycho-Neuroendocrine-Immune Interactions in COVID-19: Potential Impacts on Mental Health. Frontiers in Immunology, v. 11, artigo 1170, 2020.

5     MEHTA, P. et al. COVID-19: Considere síndromes de tempestade de citocinas e imunossupressão. THE LANCET, v. 395, c. 10229, p. 1033-1034, 2020.

6     ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE – OMS. Promover o uso racional de medicamentos. Disponível em: <https://www.who.int/activities/promoting-rational-use-of-medicines>. acesso em: 27 abril 2021.

7     BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA – ANVISA. Como a ANVISA vê o uso off label de medicamentos. Disponível em: <https://coronavirus.saude.gov.br/sobre-a-doenca>. Acesso em: 26 abril 2021.

8     BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE – CNS. CNS pede que Ministério da Saúde retire publicações sobre tratamento precoce para Covid-19 (/ultimas-noticias-cns/1570-cns-pedequeministerio-da-saude-retire-publicacoessobretratamento-precoce-para-covid-19). Brasilia, DF. Disponivel em: <http://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1570-cns-pede-que-ministerio-da-saude-retire-publicacoes-sobre-tratamento-precoce-para-covid-19>. Acesso em: 27 abril 2021.

9     BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA – ANVISA. Estabelecido controle de medicamentos durante pandemia. Brasilia, DF. Disponível em: <https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2020/estabelecido-controle-de-medicamentos-durante-pandemia>. Acesso em: 18 abril 2021.

10   BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA – ANVISA. Aprovado uso emergencial de anticorpos para tratamento de Covid-19. Disponível em: <https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2021/aprovado-uso-emergencial-de-anticorpos-para-tratamento-de-covid-19>. Acesso em: 30 abril 2021.

11   MASTELLOS, D.C. et al. Complement C3 vs C5 inhibition in severe COVID-19: Early clinical findings reveal differential biological efficacy. Clinical Immunology, v. 220, 2020.

12   CADEGIANI, F. A. et al. Proxalutamide Significantly Accelerates Viral Clearance and Reduces Time to Clinical Remission in Patients with Mild to Moderate COVID-19: Results from a Randomized, Double-Blinded, Placebo-Controlled Trial. Cureus, v. 13(2): e13492, 2021.

13   INSTITUTO BUTANTAN. Soro contra a Covid-19 produzido pelo Butantan está pronto para ser testado em humanos. São Paulo, SP. Disponível em: <https://butantan.gov.br/noticias/soro-contra-a-covid-19-produzido-pelo-butantan-esta-pronto-para-ser-testado-em-humanos>. Acesso em: 01 maio 2021.

14   BEIGEL, J.H. et al. Remdesivir for the Treatment of Covid-19 — Final Report. The New England Journal of Medicine, v. 383, n. 19, 2020.

15   BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Covid-19 Casos e Óbitos. Brasília, DF. Disponível em: <https://qsprod.saude.gov.br/extensions/covid-19_html/covid-19_html.html>. Acesso em: 01 maio 2021.

16   BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. MS-SUS COVID-19 Vacinação. Brasília, DF. Disponível em: <https://qsprod.saude.gov.br/extensions/DEMAS_C19Vacina/DEMAS_C19Vacina.html>. Acesso em: 01 maio 2021.

17   MEHRA, M. R., DESAI, S. S., RUSCHITZKA, F., PATEL, A. N. Hydroxychloroquine or chloroquine with or without a macrolide for treatment of COVID-19: a multinational registry analysis. The Lancet, Published Online, 2020.

18   SANTOS, N. Q. A resistência bacteriana no contexto da infecção hospitalar. Texto contexto – enferm. vol.13, 2004.

19   GALAN, L. E. B. et al. Phase 2 randomized study on chloroquine, hydroxychloroquine or ivermectin in hospitalized patients with severe manifestations of SARS-CoV-2 infection. PATHOGENS AND GLOBAL HEALTH, Published online, 2021.

20   LIMA, W. G. et al. Uso irracional de medicamentos e plantas medicinais contra a COVID-19 (SARS-CoV-2): Um problema emergente. Braz. J. H. Pharm., v. 2, n. 3, 2020.

21   USA. FOOD AND DRUG ADMINISTRATION. Por que você não deve usar a Ivermectina para Tratar ou Prevenir a COVID-19. Disponível em: <https://www.fda.gov/consumers/consumer-updates/por-que-voce-nao-deve-usar-ivermectina-para-tratar-ou-prevenir-covid-19>. Acesso em: 02 maio 2021.

Autores:
Inácio Ricardo A. Vasconcelos
Farmacêutico, Especialista em Análises Clínicas (UFPB), Mestre em Farmacologia (UFPB), Doutorando em Desenvolvimento e Inovação Tecnológica em Medicamentos (UFPB). Atua como Analista Clínico no Laboratório de Analises Clínicas do Hospital Universitário Lauro Wanderley.

João Carlos L. R. Pita
Farmacêutico, Mestre e Doutor em Farmacologia (UFPB). Atua como Analista Clínico no Laboratório de Analises Clínicas do Hospital Universitário Lauro Wanderley.

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