O mundo testemunhou neste ano uma corrida sem precedentes em busca de um tratamento eficaz contra a Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus. Com o avanço da pandemia, pesquisadores, empresas farmacêuticas e autoridades de saúde multiplicaram os esforços para testar a capacidade de vários compostos – alguns novos e muitos já em uso contra outras enfermidades – de deter o vírus ou reduzir os danos diretos e indiretos que causa ao organismo. Em questão de meses, milhares de pesquisas avaliando a ação de medicamentos em seres humanos, os chamados ensaios clínicos, foram planejadas e centenas colocadas em prática.
Até o momento, no entanto, o sucesso foi modesto: apenas um antiviral, o remdesivir, mostrou potencial de reduzir o tempo de internação e um anti-inflamatório, a dexametasona, diminuiu de modo importante a mortalidade de pessoas internadas necessitando de suporte respiratório. Nove meses após o início da pandemia, não se tem uma medicação específica contra a Covid-19, ainda que uma associação de fármacos para controlar a inflamação e reduzir a formação de coágulos, com uso de heparina, mostre-se promissora.
Nunca foi fácil combater com medicamentos as infecções virais, em especial as agudas. Não existem, por exemplo, antivirais de eficácia comprovada contra os agentes causadores da dengue, da febre amarela ou da gripe, embora algumas drogas controlem bem as infecções virais crônicas, como a Aids e certas formas de hepatite. Outra possível explicação para a atual ausência de resultados que permitam distinguir com mais segurança o que funciona daquilo que é ineficiente contra a Covid-19 é uma relativa falta de coordenação e planejamento adequados dos ensaios clínicos, que, em muitos casos, não usam a metodologia apropriada.
Em um estudo de revisão publicado em julho na revista Microorganisms, Atin Sethi e Horacio Bach, pesquisadores da Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá, identificaram a adoção de grupos de controle inadequados em parte dos 26 ensaios clínicos avaliando a ação de 12 compostos para tratar pacientes com Covid-19.
Alguns pesquisadores afirmam também haver um excesso de estudos com uma quantidade de participantes inferior à necessária para prover evidências científicas robustas. “Testes clínicos feitos com uma centena de participantes atendidos em um único hospital têm capacidade reduzida de fornecer resposta para uma pergunta científica”, explica o médico intensivista Luciano Cesar Pontes de Azevedo, superintendente do Sírio-Libanês Ensino e Pesquisa, centro de aprimoramento profissional do hospital de mesmo nome, em São Paulo, e integrante da Coalização Covid-19 Brasil, que conduz nove estudos de medicamentos contra a Covid-19 no país.
Em 21 de agosto, a maior base de registro de ensaios clínicos do mundo, a plataforma clinicaltrials.gov, mantida pelos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos, listava 3.086 estudos em diferentes estágios de execução avaliando tratamentos para a Covid-19. Só 272 deles (9%) seguiam o padrão mais rigoroso de investigação clínica, destinado a reduzir interferências nos resultados. São os ensaios clínicos duplo-cego, randomizados e controlados com placebo, nos quais os participantes são aleatoriamente alocados no grupo do medicamento ou do placebo (substância inócua) e, até a conclusão da pesquisa, nem médicos nem voluntários sabem quem recebeu o quê.
Pesquisadores da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, analisaram 1.551 ensaios clínicos contra a Covid-19 cadastrados no site clinicaltrials.gov e concluíram que apenas 29% poderiam providenciar o nível mais alto de evidência clínica proporcionado por estudos individuais. “A grande proporção de estudos com um esperado baixo nível de evidência é preocupante”, escreveram os autores do artigo, publicado em julho na revista Jama Internal Medicine. Para eles, a disseminação desses resultados “pode influenciar ações governamentais e a prática clínica de maneira prejudicial”.
Em meio ao joio, porém, emergem testes rigorosos e bem organizados, com resultados que começam a orientar a ação dos médicos e estabelecer um tratamento possível. Um dos primeiros ensaios clínicos a trazer dados promissores para o tratamento da doença foi o Adaptive Covid-19 Treatment Trial (ACTT), coordenado pelo Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas (Niaid) dos Estados Unidos. Participaram do estudo 1.059 pessoas, aleatoriamente separadas em dois grupos: 538 voluntários receberam o antiviral remdesivir e os outros 521 tomaram placebo, ambos os grupos tiveram acesso aos cuidados-padrão oferecidos durante a internação.
Originalmente desenvolvido pelo laboratório farmacêutico norte-americano Gilead Sciences para combater o vírus ebola, o novo composto já havia demonstrado potencial in vitro de diminuir a replicação do coronavírus Sars-CoV-2. Os resultados do teste, publicados em maio no New England Journal of Medicine, indicam que o composto reduziu em cerca de 30% o tempo de internação: metade dos indivíduos tratados com remdesivir deixou o hospital em até 11 dias. Esse tempo foi de 15 dias no grupo que recebeu placebo. Também se notou uma tendência de queda nos óbitos: morreram 8% dos doentes que tomaram o antiviral e quase 12% do outro grupo. As análises estatísticas, no entanto, não permitiram concluir se essa diferença ocorreu ao acaso ou por influência do tratamento.
Dias após o anúncio dos resultados, e antes da publicação do artigo, a Food and Drug Administration (FDA), agência norte-americana de controle de alimentos e medicamentos, autorizou o uso emergencial da medicação em pacientes internados com Covid-19. Hoje, as diretrizes de tratamento da doença redigidas pelos NIH, o maior centro de pesquisas médicas do mundo, recomendam o uso do remdesivir prioritariamente em pacientes internados menos graves. Especialistas suspeitam que o medicamento possa produzir um efeito mais benéfico na fase mais inicial da infecção, quando a reprodução do vírus é mais intensa. Por ora, o remdesivir não está disponível no Brasil – sua produção é muito limitada e seu uso foi aprovado apenas na União Europeia (provisoriamente) e em cinco países, mas não nos Estados Unidos.
A dexametasona foi o único que reduziu a mortalidade de pessoas internadas que precisavam de suporte respiratório
Foi um velho conhecido dos médicos, no entanto, que gerou os benefícios mais consistentes observados até agora no tratamento da Covid-19. É a dexametasona, uma versão sintética do hormônio cortisol, produzido por glândulas situadas sobre os rins e com potente ação anti-inflamatória e imunossupressora. Barata, amplamente disponível e com segurança comprovada por seis décadas de uso, a dexametasona reduziu a mortalidade de pacientes internados tanto em unidade de tratamento intensivo como em leitos comuns e com necessidade de algum tipo de suporte respiratório.
O efeito do medicamento foi avaliado em um terço dos 6,5 mil pacientes de um dos quatro braços do ensaio clínico “Randomized evaluation of Covid-19 therapy” (Recovery), que inclui um total de 11,5 mil pessoas atendidas em 175 hospitais do Reino Unido. Dados publicados em julho no New England Journal of Medicine mostram que a administração de doses baixas (6 miligramas por dia) diminuiu em 20% a taxa de óbito de pessoas que recebiam oxigênio por cateter ou máscara e em 30% a dos pacientes intubados. Os médicos supõem que a dexametasona ajude a controlar a resposta exagerada do sistema de defesa à presença do vírus.
“O benefício de sobrevida é claro e grande nos pacientes doentes o suficiente para necessitar de oxigênio, portanto, a dexametasona deve se tornar tratamento-padrão para eles”, afirmou Peter Horby, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, um dos coordenadores do estudo, em um comunicado à imprensa. O uso desse glicocorticoide não é recomendado nos casos mais leves nem como medida de prevenção à infecção.
Dois outros braços do Recovery, cada um deles com quase 5 mil participantes, mostraram que dois tratamentos não contribuíram para reduzir o número de mortes: a associação dos antivirais lopinavir e ritonavir, usados contra o HIV, e a hidroxicloroquina – a medicação não mostrou benefícios em casos leves, moderados e graves da doença. Um ensaio clínico conduzido pela Coalizão Covid-19 Brasil com 667 pacientes com quadro leve e moderado de Covid-19, tratados em 55 hospitais brasileiros, constatou ainda que a hidroxicloroquina, usada sozinha ou em associação com o antibiótico azitromicina, não promoveu melhora clínica. O estudo, apresentado no New England Journal of Medicine, não avaliou pacientes graves. Apesar dessas evidências, no Brasil, o Ministério da Saúde mantém uma orientação, publicada em maio, indicando o tratamento com cloroquina e azitromicina ou hidroxicloroquina mais antibiótico para casos leves, moderados e graves da doença.
Diante dos achados dos grandes ensaios clínicos, as diretrizes de tratamento dos NIH e da Organização Mundial da Saúde (OMS) incorporaram a recomendação de uso da dexametasona. Também passaram a indicar doses profiláticas do anticoagulante heparina. Uma proporção importante das pessoas infectadas pelo vírus apresenta coagulação excessiva. Possivelmente induzida pelos danos causados pelo Sars-CoV-2 ao revestimento interno dos vasos sanguíneos e pela resposta imunológica exacerbada, essa alteração reduz a oxigenação dos tecidos e pode levar à formação de bloqueios (trombos) em artérias e veias importantes e até mesmo à morte. Essas diretrizes norteiam a ação dos médicos, que, no entanto, têm autonomia para segui-las ou ignorá-las.
No Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), que integra o maior complexo hospitalar do país, o protocolo para o tratamento de pessoas internadas com Covid-19 recomenda ainda o uso de antibióticos tão logo surjam nos exames de imagem sinais de pneumonia causada por bactérias, infecção secundária que costuma surgir dos danos provocados pelo vírus. “Biopsias feitas na universidade mostraram que as pessoas que morriam quase sempre tinham infecção bacteriana”, conta o pneumologista Carlos Roberto de Carvalho, da USP, que integra o Centro de Contingências do Coronavírus no Estado de São Paulo.
No início da pandemia no país, uma equipe da universidade desenvolveu um protocolo de tratamento que foi aprovado pela Secretaria de Estado da Saúde e recomendado para os quase 300 leitos de UTI do HC e do Instituto do Coração e outros 500 leitos de hospitais do interior e do litoral monitorados pela universidade. Segundo Carvalho, esse padrão de tratamento permitiu alcançar uma taxa de mortalidade de 45% entre os pacientes que precisam de ventilação mecânica, inferior à média nacional, que é de 70% nos hospitais públicos e de 62% nos privados, segundo dados do Registro Nacional de Terapia Intensiva. “Não é baixa, mas é aceitável pela gravidade dos doentes”, diz o pneumologista.
As diretrizes de tratamento indicadas pelo Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, são mais agressivas no que diz respeito ao uso de anticoagulantes. Assim que a concentração de oxigênio no sangue cai abaixo de certo valor (94% para pessoas sem doenças respiratórias prévias) ou o exame de sangue revela sinais de hipercoagulação, os médicos iniciam uma dose terapêutica de heparina (injetada no sangue), correspondente ao dobro da profilática, aplicada sob a pele. A equipe da pneumologista Elnara Negri foi uma das primeiras a adotar doses mais elevadas de heparina para combater a coagulação excessiva que ocorre na Covid-19. Negri e Azevedo afirmam que, possivelmente por causa das boas práticas médicas e do tratamento anticoagulação mais intenso, a mortalidade dos pacientes em ventilação mecânica no hospital é de 11%. “Estamos aprendendo a identificar mais cedo os pacientes que vão desenvolver trombose”, afirma Negri, que também é pesquisadora da USP. “Ainda não sabemos qual o melhor momento para iniciar a dose terapêutica de anticoagulante.” A fim de encontrar a resposta, o grupo, em parceria com pesquisadores do Canadá e dos Países Baixos, iniciou um ensaio clínico que deve acompanhar 200 pacientes nos próximos meses.
Enquanto prosseguem os testes com outros antivirais, anti-inflamatórios, drogas que regulam a resposta imunológica e anticorpos contra o vírus, alguns pesquisadores não nutrem esperança de que seja possível chegar a um único composto capaz de tratar de modo eficiente a Covid-19. “Há uma chance de conseguirmos, mas não creio que vá se concretizar”, diz a pneumologista Margareth Dalcolmo, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro. “Acho que o tratamento exigirá uma associação de medicamentos.” Algo que os médicos já aprenderam nesses meses é a importância do que chamam de boas práticas de terapia intensiva: manter a oxigenação adequada do paciente, utilizar anticoagulantes, corticoides anti-inflamatórios e sessões de fisioterapia. “Isso ficou demonstrado na Alemanha, que tinha grande disponibilidade de leitos e profissionais qualificados e apresentou uma das menores taxas de mortalidade entre todos os países”, lembra Dalcolmo.
Projeto
Avaliação da musculatura ventilatória ins e expiratória nas doenças respiratórias (nº 10/08947-9); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Carlos Roberto Ribeiro de Carvalho (USP); Investimento R$ 1.608.714,90.