Pesquisa analisa impacto da pandemia em brasileiros com diabetes.

Pesquisa analisa impacto da pandemia em brasileiros com diabetes - Medscape - 20 de agosto de 2020.

Foto: Freepik

Os brasileiros com diabetes tiveram seus hábitos alterados, bem como consultas médicas e exames postergados ou cancelados em função da pandemia de covid-19. Essas mudanças, segundo um estudo publicado em agosto no periódico Diabetes Research and Clinical Practice[1] da International Diabetes Federation (IDF), tiveram impacto importante no controle glicêmico desses pacientes, potencialmente aumentando o risco de desfechos negativos e de óbito em caso de infecção pelo SARS-CoV-2 (acrônimo do inglês, Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2), bem como de complicações relacionadas ao diabetes.

Os autores do trabalho, Dr. Mark Barone, médico e vice-presidente da IDF, e Dr. Ronaldo Pineda Wieselberg, médico e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCMSCSP) e coordenador da força-tarefa de Diabetes na Infância da IDF na América Latina, falaram ao Medscape sobre os dados do estudo.

Durante a pesquisa conduzida por pesquisadores do Brasil, da Bélgica e da África do Sul, 1.701 brasileiros com diabetes responderam a um questionário on-line. A maioria dos participantes era do sexo feminino (75,54%), tinha entre 18 e 50 anos de idade (70,78%) e residia na região Sudeste do país (64,96%). Além disso, 60,73% tinham diabetes tipo 1 (DM1) e 30,75% diabetes tipo 2 (DM2).

Segundo Dr. Mark, a redução da prática de atividade física – referida por quase 60% dos participantes – chamou atenção da equipe: “A prática de exercício é um dos componentes do tratamento da pessoa com diabetes, portanto, o aumento da inatividade física é bastante preocupante”, afirmou o pesquisador, acrescentando que houve ainda um incremento de hábitos sedentários, por exemplo, cerca de 50% dos participantes passaram a assistir mais televisão ou ficar mais tempo navegando na internet, e aproximadamente 30% apresentaram aumento do consumo alimentar.

Entre os participantes que monitoravam a glicemia em casa, a maioria (59,4%) observou alterações, sendo que 31,2% relataram maior variabilidade nos níveis glicêmicos, 20% apresentaram valores mais altos e 8,2% valores mais baixos do que os observados antes da pandemia.

Para o Dr. Mark, apesar de as mudanças de hábitos – ocasionadas em grande parte pelo isolamento social – terem piorado o controle glicêmico, “elas não foram as únicas vilãs: a dificuldade de acesso aos serviços de saúde também parece ter contribuído para esse resultado”. De fato, 38,4% dos entrevistados adiaram consultas médicas e/ou exames, e 40,2% não haviam agendado visitas desde o início da pandemia.

O vice-presidente da IDF lembrou que o diabetes é uma doença crônica, que depende do acompanhamento contínuo. “Alguns participantes relataram que não estavam conseguindo ser atendidos pelo médico e ter acesso à equipe de saúde, o que é preocupante”, alertou.

Segundo o especialista, os dados da pesquisa foram coletados entre o final de abril e o início de maio, quando ainda não havia tanto tempo de pandemia. “O fato de, naquele período, cerca de 40% das pessoas terem tido consultas adiadas e outras 40% não terem agendado visitas e exames sugere que no momento há um grande represamento de exames e consultas, o que é bastante inadequado. O acesso ao serviço de saúde é fundamental para que ajustes terapêuticos sejam feitos, pois, se a rotina das pessoas mudou por conta da pandemia, seria necessário ajustar as doses e os horários dos medicamentos, a fim de reduzir o impacto sobre a glicemia”, destacou o Dr. Mark.

O Dr. Ronaldo afirmou que a variabilidade glicêmica e a hiperglicemia crônica estão relacionadas com o aumento de complicações crônicas em decorrência do diabetes, além do fato de o diabetes aumentar o risco cardiovascular. Além disso, a infecção pelo SARS-CoV-2 tem implicações inflamatórias diversas, podendo causar piora da função renal, miocardiopatia e eventos trombóticos.

“Em uma pessoa que já apresenta, previamente à infecção, algum comprometimento renal, cardíaco ou vascular devido ao diabetes, estes efeitos tendem a ser mais devastadores. Como se não bastasse, a maior parte da população com diabetes tipo 2 – estatisticamente falando – apresenta inflamação crônica, o que prejudica o manejo de quaisquer condições. Por fim, sabemos também que as infecções alteram a glicemia de quem tem diabetes, e que hiperglicemia piora o desfecho clínico em caso de hospitalização, bem como reduz a quimiotaxia de neutrófilos, favorecendo o surgimento de quadros de sepse. Assim, podemos entender que uma pessoa com glicemia descompensada tende a ter fatores de risco mais importantes do que uma pessoa que, apesar de ter diabetes, tem glicemia mais compensada”, destacou.

A pesquisa mostrou ainda que houve uma tendência de indivíduos com diabetes tipo 1 serem menos testados para SARS-CoV-2, mesmo apresentando sintomas, e esse grupo também parece ter sofrido um impacto maior tanto em relação aos hábitos de vida quanto aos níveis glicêmicos do que aqueles com diabetes tipo 2. Além disso, participantes que dependiam exclusivamente do Sistema Único de Saúde (SUS) aderiram menos ao isolamento social e apresentaram mais variabilidade glicêmica quando comparados com os usuários do sistema de saúde privado.

Sobre a testagem para SARS-CoV-2, o Dr. Mark explicou que o número de pessoas testadas foi muito baixo. “De maneira geral, menos de 20% dos participantes que apresentaram sintomas de covid-19 foram testados para a doença. Essa taxa nos preocupa, pois, como se trata de um grupo de risco, os testes deveriam ser priorizados; essas pessoas deveriam saber da necessidade de realizar o exame e este deveria estar disponível”, ressaltou o médico.

Além disso, o Dr. Ronaldo lembrou que há um viés de testagem em pessoas com diabetes tipo 1, especialmente por em geral serem mais jovens que as pessoas com diabetes tipo 2. “Devido à escassez de testes no Brasil durante o período da pesquisa, muitas pessoas vistas como ‘jovens e em bom estado geral’ receberam tratamento sintomático e não foram testadas para o SARS-CoV-2 e, portanto, pessoas que eventualmente tinham diabetes tipo 1 simplesmente não foram testadas”, disse.

Em relação à suscetibilidade à covid-19, o Dr. Ronaldo lembrou que, inicialmente, se chegou a pensar que pessoas com diabetes tipo 1 estariam “protegidas”, por se tratar de uma doença autoimune que, hipoteticamente, reduziria a tempestade inflamatória causada pelo vírus. Porém, dados mais recentes do National Health Service (NHS), [2] do Reino Unido, mostram que pessoas com diabetes tipo 1 têm risco 3,5 vezes maior de óbito em caso de hospitalização em comparação com a população sem diabetes. No diabetes tipo 2 esse risco seria duas vezes maior.

“O que vemos no dia a dia é que pessoas com diabetes tipo 2 tendem a ter outros fatores de risco – tais como hipertensão, obesidade e idade avançada –, que, quando associados ao diabetes, pioram o prognóstico. Já as pessoas com diabetes tipo 1 apresentam risco de cetoacidose diabética e complicação aguda potencialmente letal. Além de, em geral, terem diabetes há mais tempo – havendo assim mais tempo para o surgimento de complicações crônicas – e a já mencionada condição imunológica do diabetes tipo 1, que, infelizmente, não confirmou a proteção postulada. Todos esses fatores poderiam justificar os dados britânicos, o que nos coloca em alerta permanente em relação a essa população”, destacou.

Com relação à diferença observada entre os resultados glicêmicos de participantes com diabetes tipo 1 e 2, o vice-presidente do IDF explicou que houve mais pessoas com tipo 2 que não estavam monitorando a glicemia, o que limita a percepção desse grupo acerca de possíveis mudanças nos níveis glicêmicos. Por outro lado, o monitoramento em casa da glicemia foi algo mais frequente entre os sujeitos com diabetes tipo 1, portanto, foi possível notar um impacto maior da pandemia nos níveis glicêmicos desse grupo.

Já no que diz respeito às diferenças observadas entre pacientes atendidos no sistema de saúde público e privado, para o Dr. Mark, é possível que alguns serviços privados tenham conseguido se adaptar de forma um pouco mais rápida e isso tenha permitido que os usuários não ficassem muito tempo sem acesso ao serviço de saúde.

“Talvez esse acesso à equipe de saúde tenha sido o grande diferencial de quem conseguiu se adaptar e não teve a glicemia impactada”, ponderou.

Embora o Ministério da Saúde tenha criado algumas estratégias, por exemplo, a dispensação de medicamentos para o diabetes por tempo mais prolongado (90 dias) no SUS, a fim de evitar idas mensais às farmácias das unidades básicas de saúde (UBS), nem todos os usuários tiveram acesso à medida. Na pesquisa em questão, apenas 21% dos 64,5% dos participantes que recebiam seus medicamentos e insumos pelo SUS conseguiram retirá-los para três meses (ou 13,5% do total de entrevistados). O restante, portanto, precisou ir mensalmente às farmácias públicas durante a pandemia, o que aumentou a exposição, contribuindo para aumentar o risco de contaminação pelo SARS-CoV-2.

Para o Dr. Mark, é fundamental que essa medida (prescrição por 90 dias) seja ampliada e passe a atender toda a população. Além disso, é importante pensar em estratégias alternativas, por exemplo, na identificação dos pacientes que apresentam outras doenças crônicas além do diabetes que, devido ao risco mais elevado de mau prognóstico e óbito por covid-19, simplesmente deixaram de ir retirar seus medicamentos. O estudo mostrou que essas pessoas somaram quase 6% da amostra total.

“Deveria ser pensado um sistema de entrega em domicílio dos medicamentos para esse grupo específico. Além disso, eles deveriam ser informados sobre como acessar o serviço e os profissionais de saúde. Se a telemedicina for priorizada como medida protetiva, por exemplo, é fundamental que as pessoas saibam como acessá-la”, disse.

Referências

  1. Barone M, Harnik S, de Luca P et al. The impact of covid-19 on people with diabetes in Brazil. Diabetes Res Clin Pract. 2020;166:108304. doi:10.1016/j.diabres.2020.108304
  2. NHS. Type 1 and Type 2 diabetes and covid-19 related mortality in England. NHS England. 2020, 19 May. https://www.england.nhs.uk/publication/type-1-and-type-2-diabetes-and-covid-19-related-mortality-in-england/
Artigo anteriorBrasil lança nova estratégia para saúde mental durante a pandemia
Próximo artigoCovid-19: Película de detergente pode auxiliar em desinfecção. Fiocruz

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor, digite seu comentário.
Por favor, digite seu nome aqui