As dificuldades para se chegar a uma vacina segura contra o novo coronavírus são inéditas: pesquisadores estão tentando concluir em poucos meses etapas de testes antes desenvolvidas ao longo de anos. Faz menos de um mês que 5 mil voluntários brasileiros começaram a receber as primeiras doses da chamada vacina de Oxford, desenvolvida pela universidade de renome internacional em cooperação com a empresa farmacêutica britânica AstraZeneca e testada no Reino Unido desde abril.
Pedro Moreira Folegatti, médico infectologista brasileiro e pesquisador do Instituto Jenner, da Universidade de Oxford, foi um dos responsáveis para que o Brasil entrasse no mapa dessa testagem. Com a aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), os ensaios clínicos de fase três no país estão sendo coordenados pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). É nesta etapa que se testa a eficácia da vacina, a última antes da aprovação e distribuição.
Considerada a mais adiantada na luta contra a covid-19 pela Organização Mundial da Saúde (OMS, a vacina de Oxford contra o novo coronavírus foi “adaptada” a partir de outro experimento na universidade voltado para a Mers, doença causada por outro tipo de coronavírus.
“Como tínhamos a experiência anterior com o outro coronavírus, foi mais fácil. Foi uma questão de pegar um pedaço específico do gene que queríamos usar. E, claro, houve muito investimento do governo britânico”, diz Folegatti em entrevista à DW Brasil.
Apesar de estar num nível avançado, a vacina ainda não tem data para chegar a todos os brasileiros. “É muito difícil estabelecer uma data específica de quando as doses estarão disponíveis para a população”, pontua o pesquisador.
Deutsche Welle: Você acompanhou o desenvolvimento desta versão da vacina desde o começo?
Pedro Moreira Folegatti: Sim. Começamos a trabalhar com a vacina desde janeiro, assim que os chineses divulgaram o sequenciamento genético do novo coronavírus (SARS-CoV-2). O departamento tem uma parceria com os Estados Unidos e, juntos, montaram uma ideia de fazer os testes experimentais da vacina em animais, que deu certo.
Os primeiros ensaios clínicos começaram em abril, no Reino Unido, quando a gente começou a testar em humanos. Há dois ensaios acontecendo ao mesmo tempo. O primeiro deles, que é um estudo de fase um, o primeiro acontecendo em humanos, começou no dia 23 de abril.
Normalmente, os estudos de fase um usam uma quantidade de pessoas menor do que a gente recrutou aqui. Mas, considerando a experiência prévia na mesma plataforma, na mesma tecnologia, a gente conseguiu conversar com a agência regulatória no Reino Unido e com o comitê de ética e vacinou mais de mil pessoas nesta primeira fase.
Um mês depois, a gente começou os estudos de fase dois e três, que são estudos de eficácia, para saber se a vacina funciona de fato.
A vacina atual foi criada numa plataforma que já existia na universidade e que estava trabalhando com Mers, [causada por] outro tipo de coronavírus. Foram deletados os genes que são responsáveis pela replicação do vírus e trocados por outros que vão codificar proteínas do novo coronavírus. Essa é uma característica desta plataforma, funciona para diversas doenças, para diversos vírus.
Como tínhamos a experiência anterior com o outro coronavírus, foi mais fácil. Foi uma questão de pegar um pedaço específico do gene que queríamos usar. E, claro, houve muito investimento do governo britânico.
Como aconteceu esta iniciativa para trazer os testes para o Brasil?
Quando os casos do Reino Unido começaram a diminuir, a gente começou a procurar outros lugares no mundo que ainda tivessem vivendo uma ascensão da curva epidemiológica para continuar os testes.
Eu fiquei falando muito sobre isso com o investigador-chefe, Professor Andrew Pollard, que seria importante ir para o Brasil, sabendo que os casos no país começaram a aumentar um mês e pouco depois de ter chegado à Europa. Era um tempo que poderíamos usar para estabelecer algumas parcerias enquanto a situação do Brasil ainda estivesse em ascensão.
Depois de muita insistência minha, ele entrou em contato com alguns parceiros que ele já tinha no Brasil, e os estudos começaram a acontecer. Eu estou em contato com as equipes, ajudando o máximo possível para que tudo aconteça como tem que acontecer.
As dificuldades que você acompanhou aí nos testes clínicos e as que agora começam a ser vividas no Brasil têm semelhanças? O que se pode relatar das experiências nos dois países?
O que tem sido desafiador, tanto no Brasil como aqui no Reino Unido, é que estamos acelerando o estudo clínico dessa vacina. O que seria feito em anos de pesquisas, nós estamos fazendo em meses. Geralmente, o estudo de fase um é feito e, apenas um ou dois anos depois, começam os estudos de fase dois e três.
O que está acontecendo agora é que estas fases têm meses de diferença entre si. Muitas coisas precisam acontecer num espaço curto de tempo, então as dificuldades são muito semelhantes tanto no Reino Unido quanto no Brasil.
A gente escolheu centros que já têm experiência em pesquisa clínica de vacina no Brasil para que a gente pudesse minimizar justamente a chance de as coisas darem errado. Nesse período da pandemia, existe uma colaboração bastante efetiva, tanto das agências regulatórias no Brasil, comitês de ética… É preciso um tempo até se conseguir o ajuste fino. Mas está acontecendo. É um grande desafio que a pandemia impõe.
Se for comprovada a eficácia da vacina, a produção em grande escala deve começar quando?
É muito difícil estabelecer uma data específica de quando as doses estarão disponíveis para a população. Alguns colegas da universidade têm falado que as doses estarão disponíveis a partir de setembro, outubro. Isso acontece porque existem acordos de cooperação em diversos lugares para que a produção comece assim que a gente tiver a comprovação da eficácia.
A maneira como gente testa a eficácia é vacinando milhares de indivíduos e a gente divide essas pessoas em dois grupos diferentes. Um grupo vai receber a nossa vacina e outro vai receber outra vacina comparadora.
A gente acompanha essas pessoas ao longo do tempo e espera que a concentração maior de covid-19 aconteça entre o grupo que recebeu a vacina comparadora, e que não tenha nenhum caso entre os que foram vacinados com a de Oxford.
Por isso que a gente optou em investir em outros países que tenham ainda curva ascendente de casos, para que tenhamos uma chance mais rápida de observar tudo isso. Não dá para comprometer uma data porque não sabemos quando as pessoas vacinadas e não vacinadas irão naturalmente se expor ao vírus, e é daí que vai sair o sinal de eficácia.
Nesta terceira fase, vocês usam uma outra vacina comparadora ou um placebo?
Nós usamos uma vacina qualquer, como se fosse placebo. Porque o placebo simplesmente geralmente não tem efeito nenhum. Então, em vez de usar soro fisiológico como placebo, por exemplo, que não vai fazer nada, a gente usa alguma outra vacina já licenciada e que ajuda a produzir este efeito de aplicação de vacina, que é uma possível dor intramuscular no local da administração da vacina, por exemplo. Isso nos ajuda a colocar os efeitos adversos em perspectiva.
A eficácia vai depender da velocidade com que as pessoas vacinadas dentro da pesquisa se expõem ao vírus naturalmente. Por isso que recrutamos pessoas que estão com o risco aumentado de se infectar.
Quer dizer, a pesquisa não expõe as pessoas ao vírus. A infecção tem que acontecer naturalmente, dentro do cotidiano dos participantes?
Existem diversos pesquisadores atualmente discutindo a possibilidade de se fazer um modelo de testagem desta forma: a gente dá a vacina para as pessoas e depois expomos esses voluntários ao vírus, ao parasita, à doença que a vacina se propõe a proteger. Mas existe toda uma discussão ética por trás disso, sobre o que se dá e não para fazer. A gente só consegue fazer essas coisas quando se tem segurança e tratamento eficaz contra o que você pretende infectar as pessoas.
Depois que a pessoa toma a dose da vacina, em quanto tempo que vocês checam se ela foi infectada?
Depende do momento. Alguns participantes vão com mais frequência ao laboratório porque a gente quer fazer alguns outros estudos mais detalhados. A grande maioria dos participantes são reavaliados um mês depois de receberem a vacina com um exame de sangue. Depois disso, o exame é refeito a cada três e seis meses.
O que a gente pede aos voluntários é que, caso apresentem quaisquer sintomas de covid-19, que entrem em contato com o grupo de pesquisa. Então eles serão novamente testados.
Há duas maneiras de testar: uma deles é com swab (cotonete que retira material para análise do nariz ou garganta), por meio do exame de PCR, que detecta a carga viral naquele momento. Outro jeito é fazer um exame de sangue que identifica algumas proteínas pra saber se a pessoa já teve contato com o vírus.
A gente segue esses voluntários por um período mínimo de seis meses. Mas os estudos atuais propõem um estudo mínimo de um ano.
Sobre essas questões éticas, vocês tiveram que lidar com situações particulares no Brasil ou no Reino Unido?
Acho que a pandemia exigiu uma resposta rápida e pronta de todo mundo envolvido. É claro que é importante enfatizar que não estamos minimizando ou relaxando as medidas de segurança e distanciamento social dos participantes. Isso é realizado com bastante vigor.
Esses estudos precisam e precisaram ser autorizados. Acho que não tivemos grandes dificuldades em aprová-los sob o ponto de vista ético. As coisas aconteceram de uma forma relativamente tranquila.
Comprovada a eficácia, como saberemos por quanto tempo a pessoa fica protegida?
Esses ensaios clínicos vão responder. O que a gente sabe é que, das outras vacinas nesta mesma plataforma, as pessoas ficam protegidas contra o vírus por um ano. Agora não se sabe se a vacina garante imunidade depois de um ano. E o motivo pelo qual não se sabe é que não testamos depois de um ano. Esses estudos que começaram agora, a ideia é acompanhar as pessoas pelo máximo de tempo possível para responder essas perguntas.
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